mundo perfeito

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30.3.08

Bergman ainda não morreu (Estocolmo)


“Agora que o Ingmar Bergman morreu,” disse ela, “talvez as coisas melhorem para os artistas em Estocolmo”. Ela é uma jovem sueca que trabalha como programadora de um teatro e a frase, violenta, obrigou todos os estrangeiros a engolir em seco. Era como insinuar que a morte de Manoel de Oliveira poderia ajudar os realizadores portugueses. Com as devidas distâncias, evidentemente. Era chocante e, de certa forma, verdade.
Estamos em Estocolmo em digressão e a delicadeza manda que os artistas convidados demonstrem algum interesse pela vida cultural da cidade. É óbvio que o maior interesse de qualquer artista de visita a Estocolmo é saber onde é que se pode beber um copo depois da meia-noite cujo preço não implique pedir um empréstimo bancário. Ainda assim, o protocolo obriga a que se pergunte quem são os jovens talentos sobre os quais é preciso ter atenção, como é que as coisas estão a evoluir nos palcos suecos e toda essa conversa fiada que, inevitavelmente, irá levar à pergunta sobre esse tal bar onde pessoas sem contas off shore também conseguem pagar a conta. Em raras ocasiões, estas conversas são realmente interessantes e os propósitos alcoólicos tornam-se secundários. Quando alguém dá a entender que a morte de Bergman pode ser um contributo para a melhoria da vida artística de uma cidade, estamos perante uma dessas raras ocasiões.
Com a cumplicidade da maior parte dos suecos presentes, a jovem programadora passa a explicar: em Estocolmo há apenas uma sala que recebe espectáculos estrangeiros e os novos criadores partilham todos um mesmo palco improvisado no parque de estacionamento subterrâneo de um centro cultural. O Dramaten, nome popular dado ao Kungliga Dramatiska Teatern (equivalente ao Teatro Nacional), tem oito salas e apresenta cerca de mil exibições por ano. Nenhuma de um jovem criador nem de uma companhia estrangeira.
Curiosamente, durante uma boa parte da sua História, as companhias da corte real sueca eram francesas. Foi apenas em 1773 que um rei considerou a hipótese de a companhia real ser composta por artistas suecos e representar na língua do país. Hoje é notório que se passa o contrário e os impulsionadores do acolhimento de artistas estrangeiros são agora os estóicos resistentes que buscam refrescar a cena cultural do país. E, quer gostemos ou não, Ingmar Bergman, o símbolo nacional sueco que homenageámos em todo o mundo nos últimos meses, ainda é o seu inimigo número um. Não o artista Bergman, mas o ícone Bergman, que encenou cerca de 40 peças no Dramaten nos últimos 40 anos e deu o seu “tom” a todo o teatro sueco.
“Seja como for”, diz-nos a jovem programadora, “ainda falta muito para isto melhorar porque, na verdade, Bergman ainda não morreu”. Ao que nós respondemos: “afinal, onde é que se pode beber um copo?”.

Tiago Rodrigues
Novembro 2007
(texto originalmente publicado no suplemento Actual do semanário Expresso)

26.3.08

Relações Internacionais (Liubliana)


É a única mesa onde há espaço na esplanada. O bailarino italiano senta-se e só depois pergunta ao cliente que lá estava sentado se não há problema em invadirmos a sua mesa. Somos um grupo composto por três espanhóis (na verdade, são bascos), uma libanesa, o já mencionado e descarado italiano, um português e um belga. O cliente sorri um sorriso tímido. Mais habituado aos inesperados encontros das digressões, o belga do grupo mete conversa com o desconhecido. É John Hubbard, americano que veio do Arkansas para a Eslovénia estudar Relações Internacionais. “Então encontraste o grupo certo”, responde o belga. Primeira gargalhada.
Estamos em Liubliana, capital da Eslovénia e última etapa da digressão de Yesterday’s Man e de quatro outros espectáculos, inseridos no projecto Sites of Imagination. Depois de Espanha, França, Portugal e Itália, chegamos ao primeiro país onde o Outono é realmente frio. Ninguém estava preparado. Todos vamos às compras. Como o Ministério da Cultura português ainda não pagou nem um tostão do apoio que deu ao espectáculo em que participo, acabo por ter que pedir dinheiro emprestado para poder comprar um camisola. “Sem ressentimentos”, como escreveu Jorge Sousa Braga no poema curiosamente intitulado “Portugal”.
Já agasalhados, vamos encontrar John numa das inúmeras esplanadas do centro da cidade, quase integralmente desenhado pelo arquitecto Joze Plecnik e pleno de recantos pitorescos, antiquários, galerias e muitos cafés. Com o americano como espectador, o almoço transforma-se rapidamente numa performance multicultural. Brincamos às famílias, como miúdos, fingindo que somos todos parentes apesar das diversas nacionalidades. John, gigante loiro, começa aos poucos a participar da conversa, fascinado talvez pela excentricidade do grupo.
A conversa é agora sobre a antiga prisão transformada num péssimo hotel em que alguns estamos instalados. Planeamos fazer um filme nas celas transformadas em quartos e discutimos os pormenores surrealistas do guião. Muitas gargalhadas. A propósito de prisões, o belga fala de membros dos Black Panthers que visitou em prisões americanas. Uma basca fala do seu cunhado, actualmente preso em Espanha por alegadas ligações à ETA. Conta que ele fez centenas de desenhos da mesma paisagem, a única que vê da janela da sua cela. Agora chora-se à mesa.
Depois deste almoço, John tornar-se-ia nosso companheiro durante uma semana e a descoberta mais interessante desta passagem pela Eslovénia. Imagino-o agora, depois da nossa partida, a recordar tudo o que foi dito durante aquele almoço para escrever um novíssimo e revolucionário Tratado de Relações Internacionais.


Tiago Rodrigues
Outubro 2007
(texto originalmente publicado no suplemento Actual do semanário Expresso)

14.3.08

Conversa com um pescador (Cagliari)


Estamos no pequeno bar da Stazione Maritima de Cagliari. O pescador sardo pega no copo de vinho com as suas mãos neo-realistas, cortadas pelo fio das redes. Brinda na minha direcção. Pergunta-me se também sou um desses artistas, apontando para um cenário que está no hangar normalmente ocupado por passageiros dos ferry boats que partem para a Córsega e para o continente. “Pensei que vocês trabalhavam nos teatros. Eu só pesco no mar”, diz, malicioso, e bebe o copo de vinho de um trago.
A Sardenha é mais uma etapa da digressão do espectáculo Yesterday’s Man, depois das apresentações em Espanha, França e Portugal. Aqui, como em tantas outras cidades do mundo, o teatro não cabe nos teatros construídos. Os artistas sardos que vou conhecendo durante a minha estadia não têm espaço nos espaços culturais da cidade e ocupam sociedades recreativas, armazéns, caves.
Por diversas razões, o teatro foi saindo dos teatros. Porque os edifícios fecham as portas ao que é novo ou apenas porque não servem, são demasiado monumentais, para aquilo que o teatro de hoje quer ser. Aqui em Cagliari, as poucas salas que existem sofrem desse peso imenso da tradição. O grande Teatro Civico, junto ao castelo, está impecavelmente recuperado para que os turistas alemães que viajam nos grandes cruzeiros do Mediterrâneo o possam admirar, mas já não é um espaço público. O teatro necessita de espaços públicos para existir mas tem também esse dom de tornar públicos os espaços. Porque para que um espaço na cidade seja público, basta a hipótese de nele estarmos juntos com outros que não conhecemos. E o teatro é isso.
Durante uma visita guiada a Cagliari, organizada para alguns artistas que estão na cidade, somos surpreendidos por uma chuva torrencial. Estávamos nessa altura a admirar a fachada da Chiesa di Sant'Agostino. A chuva cai cada vez mais forte e resolvemos abrigar-nos na entrada da igreja. Talvez intrigado pelo alarde que fazemos, o padre abre a porta e depara-se com cerca de vinte pessoas encharcadas até aos ossos. Convida-nos a entrar. Agradecemos ao padre que, com um sorriso plácido, replica que é para isso mesmo que aquela casa serve, para dar abrigo. Não posso deixar de pensar que, por acidente ou intervenção divina, acabámos por devolver àquele edifício o seu sentido original de espaço público. E também me ocorre que, tal como a Stazione Maritima, esta igreja seria um bom palco para um espectáculo.
Umas horas depois ainda tenho a roupa húmida e digo ao pescador com quem converso no bar da Stazione Maritima que nós, os artistas, temos sorte. Porque ele precisa de ir ao mar para poder trabalhar e nós só temos que trabalhar para o sítio onde estamos se transformar num teatro. O pescador ficou, nessa noite, para ver o espectáculo.

Tiago Rodrigues
Outubro 2007
(texto originalmente publicado no suplemento Actual do semanário Expresso)

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13.3.08

Os nómadas (Marselha)


“E como é que ela está?”, pergunto, premindo rapidamente as teclas do computador, numa tentativa de aproximar esta comunicação via internet de uma conversa normal. “Ela” é a minha filha, que entrou há poucas semanas para a primária. “Ela está entusiasmada com a nova escola”, é a resposta que aparece no monitor. “O professor contou-me que ontem estavam a aprender o que eram os nómadas e, no fim da aula, ela disse: o meu pai é um nómada”.
O projecto Sites of Imagination chega agora a Marselha. São cinco espectáculos que fazem digressão juntos em diversos países do Mediterrâneo. Há espanhóis, portugueses, franceses, eslovenos, belgas, libaneses e italianos a viajar em conjunto: uma caravana feita de nómadas temporários. À chegada, todos recebemos um saquinho carregado de folhetos de informação turística sobre a cidade. Invariavelmente, cada um de nós retira de lá um mapa e a lista dos restaurantes. Tudo o resto – brochuras de museus, visitas guiadas, etc. – ficará dentro do saquinho durante toda a estadia.
Estar em digressão numa cidade não é visitá-la como um turista. É vivê-la de outra forma. É fingir por uns dias que se é parte da cidade. Uma anedota recorrente das várias digressões que já fiz é que basta os artistas estarem há umas horas numa cidade e acabam por ir todos dar ao mesmo café, onde irão todos os dias, em busca de uma qualquer rotina que a condição de viajantes lhes roubou.
Em Marselha, podemos visitar a Isle d’If, onde ainda hoje se pode ver o túnel escavado pelo Edmond Dantés que Alexandre Dumas imortalizou. Podemos visitar L’Estaque, que serviu de cenário à pintura de Cézanne e Renoir, ou a Cité Radieuse, uma das mais emblemáticas e utópicas obras de Le Corbusier. Em vez disso, repetimos a anedota. Numa esplanada do centro de Marselha, onde há internet de borla, termino a minha conversa e desligo o computador. Olho à volta e descubro vários dos artistas do projecto espalhados pelas outras mesas. Uns bebem pastis 51, outros fumam Gauloises e outros ainda comem ostras compradas a bom preço num quiosque de rua. Lê-se o Liberation e fala-se do último disco dos Massilia Sound System, do desafio de rugby entre a França e a Geórgia ou da importância do ensino do velho dialecto “occitaine” nas escolas públicas. Todos fingimos ser marselheses, nas poucas horas que antecedem os nossos espectáculos. Todos fingimos estar em casa.
Espero que o professor não tenha corrigido a minha filha. Porque somos realmente nómadas, acreditando que só nos faz falta o que temos na bagagem e tentando fazer de cada cidade a nossa casa. Como se a nossa vida fosse isto.

Tiago Rodrigues
Outubro 2007
(texto originalmente publicado no suplemento Actual do semanário Expresso)

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10.3.08

Da arte e do estômago (Girona)


“E seria possível fazer uma reserva?” Em digressão, as ajudas de custo que os artistas recebem para alimentação não são luxuosas, mas eu estava na disposição de me desfazer de um mês de ajudas de custo se fosse esse o preço para me sentar à mesa do El Bulli, o melhor restaurante do mundo. Do outro lado da linha telefónica, o empregado clareia a voz e responde com o máximo de delicadeza com que se pode responder a um imbecil. “Claro que sim. Penso que daqui a um ano temos uma mesa livre. Prefere almoço ou jantar?”.
Era tudo o que eu sabia sobre Girona, pequena cidade a norte de Barcelona: em todo o mundo, é o território com mais restaurantes com estrelas Michelin por metro quadrado. E é o berço do El Bulli, que fica a poucos quilómetros da cidade, na pequena povoação de Rozés, e em cuja cozinha impera Ferran Adriá, o melhor chef do planeta. Amado e odiado, Adriá fecha as portas do El Bulli seis meses por ano, para pesquisar no seu laboratório novas formas de ultrapassar os limites conhecidos da gastronomia. Ao ponto de, este ano, ter sido o artista convidado para representar a Espanha na maior exposição de arte contemporânea do mundo, a Documenta.
Estou em Girona para estrear o espectáculo Yesterday’s Man, acompanhado dos libaneses com quem trabalhei em Beirute. À chegada, saltam à vista as fachadas de velhos prédios pitorescos cobertas de lençóis com slogans anti-monárquicos. O Rabih Mroué pergunta-me o que dizem. “Queimem os reis Borbón”, traduzo. Estamos nas vésperas do dia nacional da Catalunha, 11 de Setembro.
Tanto eu como os meus companheiros libaneses, ficamos alojados na histórica judiaria de Girona. A ironia de pensar em libaneses a viver numa judiaria traduz-se numa gargalhada geral, quando percebemos que os nossos apartamentos ficam no último andar de um edifício onde está instalado o Museu Judeu. O Rabih pede-me nova tradução, desta vez dum cartaz à entrada do museu. “A tolerância é a chave para a fraternidade entre os povos”. O riso já é só um sorriso.
A judiaria e a cidade acabam por reconciliar-se connosco, graças aos seus restaurantes de tapas, a fazer lembrar os típicos mezzes libaneses. Aliás, durante toda a estadia em Girona, a comida seria várias vezes um protagonista dos acontecimentos. Prova disso foi o nosso espectáculo só ter uma verdadeira enchente de público na noite em que os organizadores anunciaram uma ceia para o espectadores, após a representação. Na Catalunha, a arte não pode olvidar o estômago. Quanto ao El Bulli, o empregado ainda esperava a resposta na outra ponta da linha telefónica. “Prefiro jantar”, respondi. Poder ser em Outubro de 2008?”. A mesa ficou reservada.

Tiago Rodrigues
Setembro de 2007

(texto originalmente publicado no suplemento Actual do semanário Expresso)

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7.3.08

Não sou o Johnny Depp (Veneza)


A Piazza di San Marco já não é mais que um pequeno acidente na linha do horizonte. Chegamos ao Lido. O motor do barco faz agora menos ruído, aproximando-se do cais do Hotel Excelsior, a sede do festival. No passeio entre o cais e o hotel, há uma multidão de pessoas, liderada por dezenas de fotógrafos. A lancha atraca e a turba grita: We love you Johnny! Os fotógrafos atropelam-se, na procura do melhor ângulo. Saio da lancha e, quando ergo a cabeça, ouve-se um “oh!” monumental. Desiludidos, os jornalistas baixam as lentes. Não, definitivamente não sou o Johnny Depp.
Venho assistir à estreia mundial do filme “Mal Nascida”, do João Canijo, que é exibido na selecção oficial do festival. Rodada entre Fevereiro e Abril deste ano, em Trás-os Montes, é a primeira longa metragem em que participei. E as cumplicidades que nasceram entre os que fizemos este filme, justificam inteiramente um desvio na minha rota, vindo do Líbano, onde estive a ensaiar o meu próximo espectáculo, que estreará em breve em Espanha.
Ao contrário do Johnny Depp, fiquei alojado nos arredores, num hotel infeliz, a meia hora da Sereníssima, e pago a estadia do meu bolso. Quando chego ao Excelsior, tenho que pedir um quarto emprestado por uns minutos para vestir o traje a preceito que trago na minha mochila. Tinha medo que se amarrotasse durante a viagem. É a Márcia Breia, uma das actrizes que protagoniza o filme, que me empresta o seu quarto. Já vestido para a guerra, lanço-me na exploração do Lido.
A fauna deste lugar alimenta-se da esperança duma imagem fugaz na passadeira vermelha do Palazzo del Cinema, este ano decorado com uma enorme bola de aço a irromper pela fachada, em homenagem ao “Ensaio de Orquestra” de Fellini. Depois de me terem visto no meio dos famosos, duas velhinhas aproximam-se de mim e pedem-me um autógrafo. Relutante, lá assino o papel que me estendem. As velhinhas agradecem-me e depois perguntam-me quem sou. E eu penso: esta é a prova científica de que, em toda a ilha, só há duas espécies animais - os que pedem autógrafos e os que dão autógrafos.
O ecossistema só se altera quando surge o rei da selva, ou seja, um galáctico de Hollywood. E o prato do dia era Johnny Depp. Toda a cadeia alimentar se desequilibra e tanto os que pediam autógrafos como os que davam autógrafos transformam-se em fãs histéricos. Depp está a dois metros de mim, rodeado de seguranças. A multidão ondula em convulsões. Ainda penso em dizer-lhe: I love you too, Johnny. Mas estava muito barulho. Acho que ele não iria ouvir-me.



Tiago Rodrigues
Setembro de 2007

(texto originalmente publicado no suplemento Actual do semanário Expresso)

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6.3.08

Welcome to Beirut



É apenas uma fotografia do Mar Mediterrâneo que nunca chegou a ser tirada. O polícia dirige-se a nós, de metralhadora a tiracolo. Exige que lhe entreguemos a máquina fotográfica. Explico que a foto nem chegou a ser tirada. O militar começa a enervar-se e exige o rolo fotográfico. Suspeita que estávamos a fotografar um edifício do governo. Talvez mais tarde vá descobrir que o rolo só tem fotos de uma criança portuguesa a brincar. Era a primeira foto que íamos tirar no Líbano. O militar arranca o rolo à máquina, com violência. Depois exibe um sorriso inesperado e diz: Welcome to Beirut.
Passei quase todo o mês de Agosto na capital libanesa, a ensaiar um espectáculo de teatro com o encenador Rabih Mroué e também com o arquitecto Tony Chakar. Já tinha estado na cidade para me encontrar com o Rabih. Voltei aos mesmo cafés, sobretudo o Torino e o De Prague, os únicos que nunca fecharam durante os bombardeamentos israelitas do Verão de 2006 e onde se concentrou a movida cultural. Depois do alívio festivo que ainda se vivia há seis meses, assisti este Verão a um regresso da tensão política e à paranóia dos atentados. Era frequente ouvir conversas sobre a eventualidade da guerra civil, assim, com normalidade, à volta de uma garrafa de cerveja Almaza.
Um dos sintomas desta tensão esteve todo o tempo mesmo ao meu lado. O Rabih Mroué, com quem estava a trabalhar agora, tinha estreado o seu último espectáculo em Tóquio e preparava-se para o apresentar em Beirute. A Securité General, órgão do governo encarregado da censura, decidiu proibir a estreia, alegando que o texto fazia referências demasiado directas à guerra civil e era, portanto, uma ameaça à unidade nacional. Uma inesperada primeira página do New York Times a noticiar o facto, acabou por transformar o Rabih num dos principais temas da política nacional.
Em plena crise, o ministro da cultura libanês publica um artigo a defender a exibição da peça e o fim da censura no país. Numa das diversas reuniões a que assisti, com artistas e produtores, o Rabih decidiu que a peça devia ser apresentada, nem que fosse ilegalmente, por apenas uma noite. E quando, na minha ingenuidade de europeu comum, pensava que a importância que pode ter uma peça de teatro já tinha ultrapassado todos os limites, aconteceu o mais invulgar de tudo. O primeiro ministro Fouad Siniora convoca um conselho de ministros e exige ao seu governo a autorização da estreia da peça. E embora esta seja uma prova da fragilidade de um país, é também um fragmento nostálgico de um mundo em que o teatro pode realmente influenciar a sociedade. O espectáculo esgotou. Welcome to Beirut.

Tiago Rodrigues
Setembro de 2007

(texto originalmente publicado no suplemento Actual do semanário Expresso)

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