Bergman ainda não morreu (Estocolmo)
“Agora que o Ingmar Bergman morreu,” disse ela, “talvez as coisas melhorem para os artistas em Estocolmo”. Ela é uma jovem sueca que trabalha como programadora de um teatro e a frase, violenta, obrigou todos os estrangeiros a engolir em seco. Era como insinuar que a morte de Manoel de Oliveira poderia ajudar os realizadores portugueses. Com as devidas distâncias, evidentemente. Era chocante e, de certa forma, verdade.
Estamos em Estocolmo em digressão e a delicadeza manda que os artistas convidados demonstrem algum interesse pela vida cultural da cidade. É óbvio que o maior interesse de qualquer artista de visita a Estocolmo é saber onde é que se pode beber um copo depois da meia-noite cujo preço não implique pedir um empréstimo bancário. Ainda assim, o protocolo obriga a que se pergunte quem são os jovens talentos sobre os quais é preciso ter atenção, como é que as coisas estão a evoluir nos palcos suecos e toda essa conversa fiada que, inevitavelmente, irá levar à pergunta sobre esse tal bar onde pessoas sem contas off shore também conseguem pagar a conta. Em raras ocasiões, estas conversas são realmente interessantes e os propósitos alcoólicos tornam-se secundários. Quando alguém dá a entender que a morte de Bergman pode ser um contributo para a melhoria da vida artística de uma cidade, estamos perante uma dessas raras ocasiões.
Com a cumplicidade da maior parte dos suecos presentes, a jovem programadora passa a explicar: em Estocolmo há apenas uma sala que recebe espectáculos estrangeiros e os novos criadores partilham todos um mesmo palco improvisado no parque de estacionamento subterrâneo de um centro cultural. O Dramaten, nome popular dado ao Kungliga Dramatiska Teatern (equivalente ao Teatro Nacional), tem oito salas e apresenta cerca de mil exibições por ano. Nenhuma de um jovem criador nem de uma companhia estrangeira.
Curiosamente, durante uma boa parte da sua História, as companhias da corte real sueca eram francesas. Foi apenas em 1773 que um rei considerou a hipótese de a companhia real ser composta por artistas suecos e representar na língua do país. Hoje é notório que se passa o contrário e os impulsionadores do acolhimento de artistas estrangeiros são agora os estóicos resistentes que buscam refrescar a cena cultural do país. E, quer gostemos ou não, Ingmar Bergman, o símbolo nacional sueco que homenageámos em todo o mundo nos últimos meses, ainda é o seu inimigo número um. Não o artista Bergman, mas o ícone Bergman, que encenou cerca de 40 peças no Dramaten nos últimos 40 anos e deu o seu “tom” a todo o teatro sueco.
“Seja como for”, diz-nos a jovem programadora, “ainda falta muito para isto melhorar porque, na verdade, Bergman ainda não morreu”. Ao que nós respondemos: “afinal, onde é que se pode beber um copo?”.
Tiago Rodrigues
Novembro 2007
(texto originalmente publicado no suplemento Actual do semanário Expresso)