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10.3.08

Da arte e do estômago (Girona)


“E seria possível fazer uma reserva?” Em digressão, as ajudas de custo que os artistas recebem para alimentação não são luxuosas, mas eu estava na disposição de me desfazer de um mês de ajudas de custo se fosse esse o preço para me sentar à mesa do El Bulli, o melhor restaurante do mundo. Do outro lado da linha telefónica, o empregado clareia a voz e responde com o máximo de delicadeza com que se pode responder a um imbecil. “Claro que sim. Penso que daqui a um ano temos uma mesa livre. Prefere almoço ou jantar?”.
Era tudo o que eu sabia sobre Girona, pequena cidade a norte de Barcelona: em todo o mundo, é o território com mais restaurantes com estrelas Michelin por metro quadrado. E é o berço do El Bulli, que fica a poucos quilómetros da cidade, na pequena povoação de Rozés, e em cuja cozinha impera Ferran Adriá, o melhor chef do planeta. Amado e odiado, Adriá fecha as portas do El Bulli seis meses por ano, para pesquisar no seu laboratório novas formas de ultrapassar os limites conhecidos da gastronomia. Ao ponto de, este ano, ter sido o artista convidado para representar a Espanha na maior exposição de arte contemporânea do mundo, a Documenta.
Estou em Girona para estrear o espectáculo Yesterday’s Man, acompanhado dos libaneses com quem trabalhei em Beirute. À chegada, saltam à vista as fachadas de velhos prédios pitorescos cobertas de lençóis com slogans anti-monárquicos. O Rabih Mroué pergunta-me o que dizem. “Queimem os reis Borbón”, traduzo. Estamos nas vésperas do dia nacional da Catalunha, 11 de Setembro.
Tanto eu como os meus companheiros libaneses, ficamos alojados na histórica judiaria de Girona. A ironia de pensar em libaneses a viver numa judiaria traduz-se numa gargalhada geral, quando percebemos que os nossos apartamentos ficam no último andar de um edifício onde está instalado o Museu Judeu. O Rabih pede-me nova tradução, desta vez dum cartaz à entrada do museu. “A tolerância é a chave para a fraternidade entre os povos”. O riso já é só um sorriso.
A judiaria e a cidade acabam por reconciliar-se connosco, graças aos seus restaurantes de tapas, a fazer lembrar os típicos mezzes libaneses. Aliás, durante toda a estadia em Girona, a comida seria várias vezes um protagonista dos acontecimentos. Prova disso foi o nosso espectáculo só ter uma verdadeira enchente de público na noite em que os organizadores anunciaram uma ceia para o espectadores, após a representação. Na Catalunha, a arte não pode olvidar o estômago. Quanto ao El Bulli, o empregado ainda esperava a resposta na outra ponta da linha telefónica. “Prefiro jantar”, respondi. Poder ser em Outubro de 2008?”. A mesa ficou reservada.

Tiago Rodrigues
Setembro de 2007

(texto originalmente publicado no suplemento Actual do semanário Expresso)

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6.3.08

Welcome to Beirut



É apenas uma fotografia do Mar Mediterrâneo que nunca chegou a ser tirada. O polícia dirige-se a nós, de metralhadora a tiracolo. Exige que lhe entreguemos a máquina fotográfica. Explico que a foto nem chegou a ser tirada. O militar começa a enervar-se e exige o rolo fotográfico. Suspeita que estávamos a fotografar um edifício do governo. Talvez mais tarde vá descobrir que o rolo só tem fotos de uma criança portuguesa a brincar. Era a primeira foto que íamos tirar no Líbano. O militar arranca o rolo à máquina, com violência. Depois exibe um sorriso inesperado e diz: Welcome to Beirut.
Passei quase todo o mês de Agosto na capital libanesa, a ensaiar um espectáculo de teatro com o encenador Rabih Mroué e também com o arquitecto Tony Chakar. Já tinha estado na cidade para me encontrar com o Rabih. Voltei aos mesmo cafés, sobretudo o Torino e o De Prague, os únicos que nunca fecharam durante os bombardeamentos israelitas do Verão de 2006 e onde se concentrou a movida cultural. Depois do alívio festivo que ainda se vivia há seis meses, assisti este Verão a um regresso da tensão política e à paranóia dos atentados. Era frequente ouvir conversas sobre a eventualidade da guerra civil, assim, com normalidade, à volta de uma garrafa de cerveja Almaza.
Um dos sintomas desta tensão esteve todo o tempo mesmo ao meu lado. O Rabih Mroué, com quem estava a trabalhar agora, tinha estreado o seu último espectáculo em Tóquio e preparava-se para o apresentar em Beirute. A Securité General, órgão do governo encarregado da censura, decidiu proibir a estreia, alegando que o texto fazia referências demasiado directas à guerra civil e era, portanto, uma ameaça à unidade nacional. Uma inesperada primeira página do New York Times a noticiar o facto, acabou por transformar o Rabih num dos principais temas da política nacional.
Em plena crise, o ministro da cultura libanês publica um artigo a defender a exibição da peça e o fim da censura no país. Numa das diversas reuniões a que assisti, com artistas e produtores, o Rabih decidiu que a peça devia ser apresentada, nem que fosse ilegalmente, por apenas uma noite. E quando, na minha ingenuidade de europeu comum, pensava que a importância que pode ter uma peça de teatro já tinha ultrapassado todos os limites, aconteceu o mais invulgar de tudo. O primeiro ministro Fouad Siniora convoca um conselho de ministros e exige ao seu governo a autorização da estreia da peça. E embora esta seja uma prova da fragilidade de um país, é também um fragmento nostálgico de um mundo em que o teatro pode realmente influenciar a sociedade. O espectáculo esgotou. Welcome to Beirut.

Tiago Rodrigues
Setembro de 2007

(texto originalmente publicado no suplemento Actual do semanário Expresso)

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