Sete personagens fora de água
Texto de Francisco Frazão para a folha de sala do espectáculo "A Festa", em cena até 27 de Julho no Teatro Maria Matos
O que há num tema? Se o projecto Urgências produzia espectáculos feitos de peças curtas em que se perguntava a cada autor(a) o que tinha ele/ela de urgente para dizer, o seu sucessor, os Estúdios, desagua num texto único (embora escrito a várias mãos) feito a partir de uma ideia que muda anualmente – nesta primeira edição é A Festa. Trabalhar a partir de um mau tema pode acordar memórias desagradáveis de redacções da quarta classe, mas há palavras que têm a estranha capacidade de aglutinar à sua volta imagens e discursos poderosos, contraditórios e actuais. “Festa” parece ser uma delas (e a prová-lo o facto de aparecer em vários títulos, basta pensar em Celebration de Pinter, Festen de Thomas Vinterberg ou La Festa de Spiro Scimone). A festa pode ser o final feliz da história, remate clássico e não-problemático de uma narrativa cheia de peripécias: finita la commedia. Mas nestes tempos em que somos obrigados a divertir-nos, em que a cultura é sofregamente engolida nessas ocasiões – da mesma família semântica – a que chamamos “festivais” (e este projecto comete a proeza auto-irónica de ser co-produzido por dois!), as complicações começam quando a festa é a história toda – basta pensar nalguns clássicos do realismo psicológico como Quem tem medo de Virginia Woolf? Uma reunião de pessoas com graus diferentes de intimidade entre si, tensões latentes e substâncias alcoólicas ou outras circulando em abundância são ingredientes ideais para uma noite animada – se não para os convivas, certamente para quem está na plateia. As máscaras caem, a violência explode, há uma espécie de catarse e a luz da manhã traz um olhar diferente sobre a vida.
Mas este espectáculo é um iceberg em que a parte submersa quer continuar a sê-lo e só muito raramente espreita – as personagens hão-de desagregar-se e vão dizer-se verdades e meias verdades, só que as pistas correm o risco de passar despercebidas na confusão das vozes. Quem são estas pessoas, o que comemoram? As respostas serão tardias e fragmentárias. Subvertendo as regras do realismo, com os seus dez minutos de exposição e as informações cruciais ditas três vezes, aqui tudo isso fica debaixo de água. Se nas peças de Tchékov a espingarda que se vê no I Acto dispara no III, nesta festa o que se perde já não se encontra. Isto que é uma tomada de posição estética deriva também do próprio processo de produção. Para além das habituais 6 semanas de ensaios houve três workshops para construção de um mundo e exploração do tema, em que participaram os criadores deste espectáculo mas também gente de fora, orientados por artistas com percursos tão estimulantes quanto divergentes. Definiram-se personagens e relações, dançou-se e cantou-se, aprendeu-se a importância das conversas sem importância. Mas agora essas personagens já não estão ansiosas por nos mostrar quem são, esqueceram-se da intriga e estão simplesmente a jantar umas com as outras. É por isso que o texto, que tem três assinaturas mas foi discutido por todos, quase não tem indicações cénicas: não era preciso, são os actores quem as escreve no palco. Todo esse trabalho prévio, essa experiência de vida em comum, já só está entre as falas, nos espaços entre os corpos: como a areia das amêijoas lembra o mar.
Francisco Frazão
O que há num tema? Se o projecto Urgências produzia espectáculos feitos de peças curtas em que se perguntava a cada autor(a) o que tinha ele/ela de urgente para dizer, o seu sucessor, os Estúdios, desagua num texto único (embora escrito a várias mãos) feito a partir de uma ideia que muda anualmente – nesta primeira edição é A Festa. Trabalhar a partir de um mau tema pode acordar memórias desagradáveis de redacções da quarta classe, mas há palavras que têm a estranha capacidade de aglutinar à sua volta imagens e discursos poderosos, contraditórios e actuais. “Festa” parece ser uma delas (e a prová-lo o facto de aparecer em vários títulos, basta pensar em Celebration de Pinter, Festen de Thomas Vinterberg ou La Festa de Spiro Scimone). A festa pode ser o final feliz da história, remate clássico e não-problemático de uma narrativa cheia de peripécias: finita la commedia. Mas nestes tempos em que somos obrigados a divertir-nos, em que a cultura é sofregamente engolida nessas ocasiões – da mesma família semântica – a que chamamos “festivais” (e este projecto comete a proeza auto-irónica de ser co-produzido por dois!), as complicações começam quando a festa é a história toda – basta pensar nalguns clássicos do realismo psicológico como Quem tem medo de Virginia Woolf? Uma reunião de pessoas com graus diferentes de intimidade entre si, tensões latentes e substâncias alcoólicas ou outras circulando em abundância são ingredientes ideais para uma noite animada – se não para os convivas, certamente para quem está na plateia. As máscaras caem, a violência explode, há uma espécie de catarse e a luz da manhã traz um olhar diferente sobre a vida.
Mas este espectáculo é um iceberg em que a parte submersa quer continuar a sê-lo e só muito raramente espreita – as personagens hão-de desagregar-se e vão dizer-se verdades e meias verdades, só que as pistas correm o risco de passar despercebidas na confusão das vozes. Quem são estas pessoas, o que comemoram? As respostas serão tardias e fragmentárias. Subvertendo as regras do realismo, com os seus dez minutos de exposição e as informações cruciais ditas três vezes, aqui tudo isso fica debaixo de água. Se nas peças de Tchékov a espingarda que se vê no I Acto dispara no III, nesta festa o que se perde já não se encontra. Isto que é uma tomada de posição estética deriva também do próprio processo de produção. Para além das habituais 6 semanas de ensaios houve três workshops para construção de um mundo e exploração do tema, em que participaram os criadores deste espectáculo mas também gente de fora, orientados por artistas com percursos tão estimulantes quanto divergentes. Definiram-se personagens e relações, dançou-se e cantou-se, aprendeu-se a importância das conversas sem importância. Mas agora essas personagens já não estão ansiosas por nos mostrar quem são, esqueceram-se da intriga e estão simplesmente a jantar umas com as outras. É por isso que o texto, que tem três assinaturas mas foi discutido por todos, quase não tem indicações cénicas: não era preciso, são os actores quem as escreve no palco. Todo esse trabalho prévio, essa experiência de vida em comum, já só está entre as falas, nos espaços entre os corpos: como a areia das amêijoas lembra o mar.
Francisco Frazão
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