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19.5.08

13 metros a oeste (Bergen)


Sven Agen Birkeland, director do Teatergarasjen, cozinhou bacalhau para o jantar. A companhia visitante e toda a equipa do teatro estão presentes. “Hoje temos cá um português”, exclama Sven. “É uma responsabilidade muito grande cozinhar bacalhau para um português”.
Há lugares onde voltamos como se voltássemos a casa. São os lugares cujos cheiros reconhecemos, numa colaboração sempre misteriosa entre a memória e o olfacto. São os lugares que nos fazem sorrir sem que saibamos porquê. Bergen, cidade encaixada entre as montanhas e os fiordes da costa atlântica da Noruega, é um desses lugares para mim.
“Em 98, em 2001, em 2003, em 2005 e agora”. Eu e o Sven fazemos contas de cabeça para chegar ao cálculo final: é a quinta vez que venho ao Teatergarsjen, espaço mítico do teatro alternativo em toda a Escandinávia durante os últimos vinte anos. Foi aqui que gente como Meg Stuart ou os Forced Entertainment, entre muitos, muitos outros, foram apresentados pela primeira vez nesta parte do mundo. “É a quinta e última vez”, acrescenta Sven. Todo o quarteirão onde está encaixado o Teatergarasjen, à beira mar, vai ser demolido e urbanizado por uma empresa privada. A obra começa daqui a um mês. A reconstrução do teatro faz parte do contrato com a cidade. “Vai ser um teatro novo, mais confortável, com mais material técnico, com muito melhores condições de trabalho”, é o que diz Sven durante o jantar. Di-lo mais para si próprio do que para nós. Basta ver a nostalgia com que olha para as paredes do teatro, ainda por demolir, para perceber que ainda não aceitou a ideia de habitar um teatro novo, um teatro que seja verdadeiramente um teatro, em vez desta antiga fábrica transformada em teatro precário.
O teatro será reconstruído praticamente no mesmo lugar. “Vai estar 13 metros mais para oeste”, informa Sven, com o rigor e devoção de um miúdo a falar da sua colecção de borboletas. “Da próxima vez que voltarem cá, vamos estar exactamente no mesmo sítio, mas 13 metros mais a oeste”, graceja. E eu penso que não são 13 metros a oeste que vão matar a alma do Teatergarasjen. Pode ser que o construam novinho em folha, imaculado, mas depressa ganhará as suas sujidades, cicatrizes, histórias. O tempo pode muito.
“Então e o bacalhau? O que é que o especialista acha do meu cozinhado?”, questiona Sven com a exuberância a que o final da refeição já obriga, aplicado também em afastar a nuvem de nostalgia que paira sobre nós. “Perfeito”, respondo eu.
Para dizer a verdade, o bacalhau não estava grande coisa. Mas quando respondi “perfeito”, não estava a mentir. Estava a falar de outro fiel amigo.

Tiago Rodrigues
Dezembro de 2007
(originalmente publicado no suplemento Actual do semanário Expresso)