O covil do dragão (Aberystwyth)
À chegada, já de noite, somos conduzidos para fora da cidade. Percorremos caminhos cada vez mais estreitos, ao ponto de o carro caber com dificuldade entre as sebes que delimitam a estrada. Estamos no meio dos montes. Não há luzes à volta. A nossa anfitriã e condutora, directora do Departamento de Teatro da Universidade de Aberystwyth, anuncia: “chegaram a casa”.
Depois de vários meses de digressão, o anúncio assim a quente de que “cheguei a casa” é um pouco desconcertante. A “casa” é uma cottage no meio do campo, cercada por um intenso cheiro a estrume que, depois do incómodo inicial, se torna particularmente reconfortante. Na manhã seguinte já nenhum dos meus companheiros de digressão, entre os quais se contam os actores, técnicos e a produtora da companhia belga tg STAN, se queixam do cheiro. Sobretudo quando descobrem a paisagem que nos rodeia e que ontem era só negrume. Ao longe, vemos Aberystwyth, a cidade onde hoje apresentamos o nosso espectáculo. No centro da imponente baía de Cardigan, uma das mais celebradas paisagens do País de Gales, Aberystwyth é uma pequena cidade cuja metade da população são estudantes universitários e é também conhecida por ter sido a região onde viveu o último dragão do mundo. Há até uma gruta que se pode visitar onde viveu, garantem a pés juntos os nativos, o último dragão das ilhas britânicas. Estamos, portanto, numa cidade onde realidade e fantasia se misturam, o que não é difícil de acreditar quando observamos as quantidades de cerveja consumidas pela população universitária.
É a primeira vez nesta digressão que nos confrontamos com uma paisagem rural. Habituado a hotéis e apartamentos nos centros das cidades, ofuscado pelas luzes e pelo trânsito urbanos, reajo com estranheza à convivência com as ovelhas e as galinhas que rodeiam a casa onde agora estamos. Depois do ritmo alucinado do Cairo, da modernidade de Estocolmo, da intensidade de Beirute ou da força de Berlim, Aberystwyth, além de ser a primeira cidade onde faço digressão cujo nome não consigo pronunciar (e escrevo-o com admitida dificuldade), é também o primeiro lugar onde me sinto completamente deslocado.
Durante os últimos meses, cumpri o exercício de me tentar encontrar em cada uma das cidades por onde fui trabalhando. De uma forma ou de outra, havia um lugar para mim, porque há sempre lugar para um estrangeiro ou um estranho na arquitectura humana das cidades. No campo, no entanto, no meio da beleza verdejante e organizada de Gales, sou mais que isso: sou um intruso. E quando a nossa anfitriã nos vem buscar para irmos para a cidade, preparar o espectáculo desta noite, não posso deixar de sentir um certo alívio em abandonar esta casa campestre. E sinto até uma certa pena desse último dragão que habitou a tranquila Aberystwyth e nunca teve a oportunidade de ver o resto do mundo.
Tiago Rodrigues
Dezembro de 2007
(originalmente publicado no suplemento Actual do semanário Expresso)
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