O riso do Eixo do Mal (Damasco)
Faço o papel de um juiz que, em 1925, condenou um professor por ter ensinado a Teoria da Evolução num liceu da pequena cidade de Dayton, no Tenessee. No final da peça, dirijo-me ao público, já após a sentença. Tenho que dizer a frase: “Meus amigos, o povo americano é um grande povo”. E só nesse momento me apercebo do que essa frase pode significar aqui, em Damasco, a capital de um dos países que Bush inclui no Eixo do Mal.
Chama-se Dar el Salam, o maior teatro da Síria, que é também uma escola de artes. É aqui que, esta noite, apresentamos The Monkey Trial, um espectáculo da companhia belga tg STAN a partir das transcrições do célebre julgamento de John T. Scopes, que também já deu origem a um filme protagonizado por Spencer Tracy, intitulado “Inherit The Wind”, em 1960.
Trata-se de um caso mítico na História legal dos EUA e do início de uma longa batalha entre evolucionistas e “criacionistas”, ou seja, entre os defensores de Darwin e aqueles que acreditam que o relato da criação do Homem no Génesis é verdadeiro e deve ser entendido literalmente. É curioso notar como hoje esta controvérsia continua a ser de uma actualidade absoluta nos Estados Unidos. São ainda muitas as escolas públicas onde ensinam às crianças americanas que é um facto científico que Deus criou o Homem quando nele soprou “o sopro da vida” ou que Eva foi realmente criada a partir da costela de Adão.
O espectáculo comprime em duas horas e meia um processo que durou 11 dias, usando uma espécie de Best of das actas do processo. Este espectáculo já foi apresentado em vários países europeus e se mereceu algum entusiasmo por parte do público, isso deveu-se sobretudo à forma do espectáculo, ao óptimo material de texto que origina das actas do julgamento e a um certo prazer na crítica à sociedade americana. Na Síria, no entanto, esta peça é menos sobre o ensino de Darwin e muito mais sobre a relação entre o Estado e a religião, o combate entre uma ideia de Estado laico ou Estado confessional. De súbito, o público reage em partes da peça onde nunca antes tínhamos tido reacções e percebemos rapidamente que não temos qualquer ideia de como o que dizemos pode ser interpretado.
E aqui estou eu, em frente a esta plateia síria, em silêncio. E digo a frase. “Meus amigos, o povo americano é um grande povo”. Alguns segundos de silêncio. E depois uma enorme gargalhada que demora até a fim do espectáculo a desaparecer. Ainda durante os aplausos, há gente no público a rir. Para eles, esta frase não pode ser entendida senão como uma ironia.
Tiago Rodrigues
Novembro de 2007
(originalmente publicado no suplemento Actual do semanário Expresso)
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