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14.3.08

Conversa com um pescador (Cagliari)


Estamos no pequeno bar da Stazione Maritima de Cagliari. O pescador sardo pega no copo de vinho com as suas mãos neo-realistas, cortadas pelo fio das redes. Brinda na minha direcção. Pergunta-me se também sou um desses artistas, apontando para um cenário que está no hangar normalmente ocupado por passageiros dos ferry boats que partem para a Córsega e para o continente. “Pensei que vocês trabalhavam nos teatros. Eu só pesco no mar”, diz, malicioso, e bebe o copo de vinho de um trago.
A Sardenha é mais uma etapa da digressão do espectáculo Yesterday’s Man, depois das apresentações em Espanha, França e Portugal. Aqui, como em tantas outras cidades do mundo, o teatro não cabe nos teatros construídos. Os artistas sardos que vou conhecendo durante a minha estadia não têm espaço nos espaços culturais da cidade e ocupam sociedades recreativas, armazéns, caves.
Por diversas razões, o teatro foi saindo dos teatros. Porque os edifícios fecham as portas ao que é novo ou apenas porque não servem, são demasiado monumentais, para aquilo que o teatro de hoje quer ser. Aqui em Cagliari, as poucas salas que existem sofrem desse peso imenso da tradição. O grande Teatro Civico, junto ao castelo, está impecavelmente recuperado para que os turistas alemães que viajam nos grandes cruzeiros do Mediterrâneo o possam admirar, mas já não é um espaço público. O teatro necessita de espaços públicos para existir mas tem também esse dom de tornar públicos os espaços. Porque para que um espaço na cidade seja público, basta a hipótese de nele estarmos juntos com outros que não conhecemos. E o teatro é isso.
Durante uma visita guiada a Cagliari, organizada para alguns artistas que estão na cidade, somos surpreendidos por uma chuva torrencial. Estávamos nessa altura a admirar a fachada da Chiesa di Sant'Agostino. A chuva cai cada vez mais forte e resolvemos abrigar-nos na entrada da igreja. Talvez intrigado pelo alarde que fazemos, o padre abre a porta e depara-se com cerca de vinte pessoas encharcadas até aos ossos. Convida-nos a entrar. Agradecemos ao padre que, com um sorriso plácido, replica que é para isso mesmo que aquela casa serve, para dar abrigo. Não posso deixar de pensar que, por acidente ou intervenção divina, acabámos por devolver àquele edifício o seu sentido original de espaço público. E também me ocorre que, tal como a Stazione Maritima, esta igreja seria um bom palco para um espectáculo.
Umas horas depois ainda tenho a roupa húmida e digo ao pescador com quem converso no bar da Stazione Maritima que nós, os artistas, temos sorte. Porque ele precisa de ir ao mar para poder trabalhar e nós só temos que trabalhar para o sítio onde estamos se transformar num teatro. O pescador ficou, nessa noite, para ver o espectáculo.

Tiago Rodrigues
Outubro 2007
(texto originalmente publicado no suplemento Actual do semanário Expresso)

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1 Comments:

  • At 1:18 da tarde, Anonymous Anónimo said…

    passei por cá para ver o blog.
    gostei.
    um abraço
    carla delgado
    ps: mantenho interesse no que falei à claudia.

     

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