mundo perfeito

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30.4.04

As árvores

Nas últimas semanas, a minha filha desenvolveu um fascínio pelas árvores. Enquanto passeamos pela rua vai apontando e dizendo "esta árvore tem folhas" ou "esta árvore não tem folhas". Por causa da minha filha, dei-me conta de como tantas árvores sem folhas partilham o espaço e o tempo de outras tantas com folhas. Um pouco como nós. Uns remediados e outros nem tanto, todos a viver no mesmo tempo e lugar. Com a diferença de que a maior parte de nós, com folhas ou sem elas, carece da honestidade que caracteriza as árvores. Espero que a minha filha continue a olhar mais para as árvores do que para os que não têm raízes que os prendam ao chão.

29.4.04

Activos e Passivos

Nos últimos dias, li na imprensa que o crime de corrupção passiva dá, teoricamente, mais anos de prisão, do que o de corrupção activa. Ou seja, na corrupção, o passivo é considerado um criminoso mais perigoso que o activo. Ora aí está uma coisa que, fosse aplicável em todas as vertentes da lei, poderia dar muito jeito aos arguidos do processo Casa Pia.

28.4.04

PROMO POST

"Vagabundos de nós" em digressão.
Dias 30 de Abril e 1 de Maio, no Teatro Lethes, em Faro, às 21h30.
Texto de Daniel Sampaio. Encenação de Luís Osório. Interpretação de Nuno Lopes e Márcia Breia.
Este espectáculo é a segunda produção de teatro do Mundo Perfeito.

27.4.04

Conversa no bar do Maria Matos II

Ainda após o espectáculo "Questionism", já no bar, o Thomas Walgrave conta que, há dois anos, esteve em Jerusalém. Foi numa das alturas do ano em que a hora muda. Alguns dias depois de ele chegar a Jerusalém, a hora devia mudar. No entanto, as autoriadades palestinianas, talvez por falta de armas mais eficazes, resolveram usar a mudança de hora como instrumento de contestação em relação a Israel. Assim, os palestinianos mudaram a hora uma semana antes do que era suposto.
Na zona palestiniana isto não era problemático, tal como o não era em Telavive ou outras áreas israelitas. Mas em Jerusalém, onde existem organizaçãoes israelitas e palestinianas em precária coabitação, esta situação gerou o caos. As lojas palestinianas fechavam com uma hora de diferença das israelitas. As empresas, as escolas, etc.
O Thomas falhou vários compromissos porque as próprias embaixadas estavam confusas. A embaixada holandesa funcionava segundo a hora israelita, ao passo que a embaixada belga funcionava segundo a hora palestiniana. Esta tomada de posição, aparentemente simbólica, dos palestinianos, tinha-se tornado numa verdadeira dor de cabeça para os israelitas e ameaçava ser bastante prejudicial, sobretudo financeiramente. Alguns dias mais tarde, os israelitas viram-se obrigados a antecipar também a mudança da hora e viver no mesmo «tempo» em que os palestinianos.
Ainda assim, durante os dias em que as horas dos dois povos eram distintas, as ruas de Jerusalém encheram-se de soldados israelitas. Os soldados mandavam parar transeuntes, a quem não pediam os documentos, mas a quem perguntavam as horas. Se a hora revelada pelo relógio de pulso fosse a palestiniana, davam uma coronhada no mostrador. Como se pudessem fazer algo contra o tempo ou a raiva.

Conversa no bar do Maria Matos I

Depois de três horas de monólogo, o Frank Vercruyssen diz: "Hoje estava a imaginar uma relação que seria realmente um amor impossível. Ele sofria de claustrofobia e ela de agorafobia".

23.4.04

Questionism

Não percam por nada deste mundo!
"Questionism" da companhia belga Tg STAN.
Está em cena no Teatro Maria Matos, nos dias 23, 24 e 25 de Abril, às 21h.
Este espectáculo foi considerado a melhor criação de teatro do ano 2003 na Bélgica e Holanda.


O miúdo que vai ser alguém

Há um miúdo no meu bairro que está sempre a cuspir da varanda para as pessoas que passam. Todos os dias cospe num outro miúdo que passa naquela rua. O miúdo-cuspido olha sempre para cima, a ver quem lhe cuspiu em cima, mas o miúdo-cuspidor esconde-se sempre dentro de casa. O miúdo-cuspido sabe quem foi, mas não lhe toca à campainha para o insultar. Uma vez fê-lo, mas apareceu o pai do miúdo-cuspidor à janela e deu-lhe um raspanete, desmentindo que o filho fosse capaz de cuspir em alguém.

Esta manhã, o miúdo-cuspidor chegou-se à varanda e, da sua posição superior de quem mora num quarto andar, cuspiu em cima do miúdo-cuspido que, como sempre, ia apenas a passar. Esta manhã, ao contrário da raiva ou impotência habituais, o miúdo-cuspido expressou um sorriso. Um sorriso e, acenando para a varanda já vazia do quarto andar, disse: obrigado. Esta manhã tive a certeza que este miúdo-cuspido vai ser alguém.

E um dia vai morar no quinto andar. E não vai cuspir em ninguém. Nem mesmo no miúdo-cuspidor do andar de baixo.

17.4.04

O fim da aventura

Embora amanhã não seja a última vez que "Vagabundos de nós" sobe a um palco, o final de uma carreira tem sempre um sabor agridoce. Amanhã, às 17 horas, o espectáculo escrito por Daniel Sampaio, encenado por Luís Osório e interpretado por Márcia Breia e Nuno Lopes, é exibido uma última vez no Teatro Municipal Maria Matos, onde já foi visto por perto de 6 mil pessoas.

Com todos os riscos que representou (o Daniel estreava-se na escrita para teatro e o Luís na encenação), "Vagabundos de nós" garantia, desde o início, todos os ingredientes de uma aventura: houve obstáculos para transpor e objectivos a conquistar. Mas mais do que isso, como em todas as boas aventuras, de Júlio Verne a Emilio Salgari, esta também foi um espaço de amizade. Uma aventura de reencontros de amigos (desde o Conservatório, que não passava tanto tempo com o Nuno), de novas amizades (sobretudo, os admiráveis Daniel e Márcia, mas também o Jorge, a Alexandra e a Maria), de cumplicidades (como aquela que tenho, à prova de bala, com o Luís) e de confiança cega (como a que tenho na Magda, que tantas vezes assume o leme do barco que nos leva rio acima).

Amanhã não é, efectivamente, a última representação de "Vagabundos de nós". É apenas a última no Teatro Maria Matos, cuja equipa nos merece um apreço especial pelo entusiasmo invulgar com que aceitaram fazer parte da tripulação desta aventura.

Amanhã ainda não é o fim da aventura, mas é essa a sensação que teremos quando o Nuno e a Márcia recolherem aos camarins depois dos aplausos. Nos dias seguintes, até talvez aconteça que alguns de nós nos enganemos e, num cruzamento, tomemos o caminho do Maria Matos, esquecendo-nos que a carreira do espectáculo já acabou. Mas ainda este mês, o caminho que tomamos será novo.

No dia 30 de Abril, "Vagabundos de nós" estará em cena no Teatro Lethes, em Faro. Os bilhetes estão quase esgotados.

No dia 7 de Maio, às 21h30, "Vagabundos de nós" estará em cena nos Recreios da Amadora, na Amadora. Para quem não viu em Lisboa, esta é a última oportunidade.

15.4.04

Regresso a casa

Estreei-me no teatro profissional em 98. Primeiro como encenador, com o espectáculo "O Menino de Belém", estreado em Março no novíssimo palco Recreios da Amadora. No mês seguinte como actor, com a co-produção dos Artistas Unidos com o Teatro Nacional D.Maria II, "A Queda do Egoísta Johaan Fatzer", no velhinho Teatro Variedades.

Duvido que alguma vez regresse ao Variedades. Pelo menos àquele Variedades, onde os pombos faziam ninho nos camarotes. Mas amanhã e depois, regresso aos Recreios da Amadora. E, com todas as dificuldades que implica trabalhar na Amadora, é uma emoção voltar a representar na cidade onde cresci e ainda vivo.

Os nervos também são os mesmos dos daquele dia em que, com um elenco de amigos com quem partilhava as aulas do Conservatório, vi a sala encher para ver a estreia do "Menino de Belém". Amanhã vou estar, por trás da cortina, a espreitar o público. Talvez à procura de caras conhecidas. Talvez a reencontrar amigos esquecidos. Talvez a olhar para ti. Ou para si, depende da intimidade.

Stand-up Tragedy está em cena nos Recreios da Amadora (Av. Santos Matos, junto à estação de comboios da Amadora), nos dias 16 e 17 de Abril, às 21h30.

13.4.04

A pesca dos gambuzinos

Desabou um dos pilares que sustentava a minha visão do mundo e da realidade. Como tantos portugueses, aconteceu-me na infância, sobretudo na Guarda, ir caçar gambuzinos. Nunca sabendo bem o que eram. Imaginando (não sei porquê!) uma mistura entre um pirilampo e um ouriço cacheiro. Passando horas no meio das espigas ou das mimosas. Oferecendo a gargalhada a um tio apenas sete anos mais velho que eu, mas sábio o suficiente para saber que gambuzinos eram coisa fantástica, imaginada por um velho astuto para entreter as crianças irrequietas. Um dia terei descoberto que afinal não havia gambuzinos. Terei evitado dar parte de fraco. Terei seguido a ordem natural das coisas e, em jeito de vingança, terei começado a persuadir os meus primos mais novos a irem caçar gambuzinos para as encostas da Sequeira, freguesia da cidade da Guarda. Cresci com a expressão desdenhosa “vai caçar gambuzinos” na boca.
E pronto, cá estou, com 26 anos a passear a filha de dois anos pelo Aquário Vasco da Gama. A filha Beatriz a admirar os cavalos marinhos e a passar os dedos pela carapaça das tartarugas e, continuando o passeio, o desabar de 26 anos de uma forma de olhar o mundo. Num pequeno aquário, em frente ao tanque das tartarugas, estão uns peixes mínimos, translúcidos, com reflexos brilhantes. O letreiro informativo tem escrito: Gambuzinos. Já não recordo o nome científico, mas é uma latinada qualquer do género gambuzino gambuzinae. O que é certo é que são gambuzinos! Peixes do Índico chamados gambuzinos! Não posso crer. Exclamo: “gambuzinos”, com ponto de exclamação apropriado, o que significa que falei alto o suficiente para que a mão da minha filha tremesse na minha. Ela não sabe o que me está a acontecer e olha-me, espantada. Ela não sabe que ver estes peixinhos que brilham no escuro (certamente vem daí a ideia de que são semelhantes a pirilampos) é, para mim, um regresso abrupto e inesperado à ignorância infantil e ao frio áspero da Guarda nas orelhas durante a caça aos gambuzinos. Ela não sabe que, para mim, isto é o mesmo que ir ao Jardim Zoológico, encontrar uma jaula onde habita um mamífero gordo, vermelho e de longas barbas brancas e depois, lendo o letreiro, perceber que se trata do Pai Natal. A minha filha não sabe que eu acabei de ver gambuzinos, gambuzinos verdadeiros e que isto é o mesmo que a descoberta científica e concreta de que o Pai Natal existe. Distraída com os cavalos marinhos, a minha filha larga-me a mão e nem se dá conta que eu, 26 anos depois, descobrindo que os gambuzinos existem (e que apesar de não poderem ser caçados, podem ser pescados), eu fiquei comovido a olhar para aquele aquário. Não digo que tenha chorado. Chorar também seria demais. Isso não. Nem pensar.

Mas imaginei-me a pescar grandes gambuzinos, no meio das mimosas, perante o olhar incrédulo do meu tio.

12.4.04

Frank Vercruyssen

Sou suspeito a falar dele, porque é não só um grande amigo, como alguém que me ensinou uma boa parte do pouco que sei sobre teatro. Suspeito ou não, mantenho a opinião que formulei em 97, quando ainda não o conhecia de lado nenhum e o vi representar pela primeira vez no Centro Cultural de Belém: Frank Vercruyssen é provavelmente o melhor actor que já vi em palco. E vai estar em Portugal, em Lisboa, ainda este mês. Nos dias 22, 23, 24 e 25 de Abril, às 21 horas, apresenta “Questionism” no Teatro Municipal Maria Matos.

Frank Vercruyssen é um dos actores da companhia belga STAN e com este espectáculo, que agora traz a Portugal numa versão inglesa (sem legendas), ganhou o maior prémio da área nos Países Baixos. “Questionism” (no original “Vraagzucht”) foi considerado pelo Kunst Festival des Arts o melhor espectáculo de teatro criado na Bélgica e Holanda durante o ano 2003.

Quem não for ver, leva um murro.

11.4.04

Bolinhas, o fim de uma amizade

Há cerca de uma semana, estava a atravessar a avenida Brito Pais, na Amadora, a caminho de ir buscar a minha filha. Ao passar nessa avenida, que fica muito perto do liceu que frequentei (“frequentei” seria uma expressão mais correcta se aplicada aos cafés circundantes), um rapaz que eu não conhecia, com cerca de 20 anos, dirigiu-se a mim. “Vi-te ontem na televisão. Muita giro!” O rapaz referia-se a uma pequena participação que fiz no programa O Homem Que Mordeu O Cão, do Nuno Markl, onde interpretei um pequeno número de comédia. Provavelmente já me cruzei centenas de vezes com este rapaz moreno e magro, com boné à condutor de carro de tunning. Provavelmente ele já me poderia ter visto actuar várias vezes nos Recreios da Amadora, onde vou voltar esta semana, para apresentar o Stand-up Tragedy nos dias 16 e 17. No entanto, este rapaz com quem já me cruzei anonimamente não sei quantas vezes, veio neste dia cumprimentar-me por se ter cruzado comigo num ecrã de televisão. Por mim tudo bem... Agradeci-lhe e segui caminho a pensar que é verdade a minha teoria segundo a qual, cada vez que apareço na televisão, os meus vizinhos tratam-me muito melhor durante cerca de 15 dias.
O curioso é que bastou caminhar mais alguns metros para, num pequeno espaço verde da zona, me esperar outra surpresa. Esta sim, com dimensão para que lhe chamemos “surpresa”. Nesse pequeno jardim ladeado por dois lotes de prédios ao estilo Jota Pimenta, vive há cerca de 10 anos uma cadela chamada Bolinhas. A Bolinhas tem uma história gira. Quando eu andava no liceu e, como no início vos dei a entender, passava mais tempo no café do que na sala de aula, a Bolinhas foi a mascote de uma geração de estudantes. Apareceu de um dia para o outro. Ela e o seu amante, o Pastilhas. A Bolinhas é um labrador e o Pastilhas, o macho lá de casa, era um terço do tamanho da sua companheira. Mercê da sua simpatia para com os habitantes da esplanada mais próxima, a Bolinhas foi adoptada pelos clientes do café Tás Aqui, Tás Ali. E foi ficando. E foi sendo bem recebida pelos inquilinos (sobretudo as inquilinas) dos dois lotes de prédios Jota Pimenta.
Eu sempre fui dos mais fiéis amigos da Bolinhas, o que se justifica pelo facto de também ser um dos mais fiéis clientes do café. Nessa altura cheguei a escrever uma pequena crónica sobre a Bolinhas, com foto e tudo, publicada no jornal GrandAmadora, onde colaborava. Para glória da cadela e do escriba, essa crónica foi emoldurada e esteve pendurada uns anos na parede do café. Há 10 anos que a Bolinhas vive naquele arremedo suburbano de jardim, numa casota improvisada com contraplacado da autoria dos seus amigos bípedes. Entretanto foi sendo adoptada por sucessivas gerações de estudantes, que porventura a ajudaram a ultrapassar o desaparecimento do seu pequeno amante, o cão de pêlo negro conhecido por Pastilhas.
Ao passar por esse jardim, na semana passada, a Bolinhas viu-me e, em vez da habitual aproximação doce e de cauda a abanar, a cadela correu até mim a rosnar. O seu pêlo alaranjado é agora quase todo branco e está mais pesada. Talvez também eu tenha mudado, pensei. Chamei-a Bolinhas, estendi-lhe a mão para cheirar. Ela parou de ladrar um instante, ganiu e, quando parecia estar a reconhecer-me, rosnou novamente e tentou morder-me. Afastei-me. Confesso que um pouco magoado. Pensei no que teria motivado a agressividade da cadela. Será que não me reconheceu? Penso que sim. Penso que me reconheceu durante o instante de silêncio. Então porque voltou a tentar morder-me? Não é possível que ela tenha visto O Homem Que Mordeu O Cão e tenha pensado que o título do programa fosse mais que uma metáfora. Então o que foi? Em que é que eu mudei para que humanos que nunca me cumprimentaram agora venham dar-me os parabéns e uma cadela que sempre foi meiga para mim, tente agora morder-me? A verdade é que os animais são os primeiros a sentir que se aproxima um furacão. Confesso que fiquei assustado.