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13.4.04

A pesca dos gambuzinos

Desabou um dos pilares que sustentava a minha visão do mundo e da realidade. Como tantos portugueses, aconteceu-me na infância, sobretudo na Guarda, ir caçar gambuzinos. Nunca sabendo bem o que eram. Imaginando (não sei porquê!) uma mistura entre um pirilampo e um ouriço cacheiro. Passando horas no meio das espigas ou das mimosas. Oferecendo a gargalhada a um tio apenas sete anos mais velho que eu, mas sábio o suficiente para saber que gambuzinos eram coisa fantástica, imaginada por um velho astuto para entreter as crianças irrequietas. Um dia terei descoberto que afinal não havia gambuzinos. Terei evitado dar parte de fraco. Terei seguido a ordem natural das coisas e, em jeito de vingança, terei começado a persuadir os meus primos mais novos a irem caçar gambuzinos para as encostas da Sequeira, freguesia da cidade da Guarda. Cresci com a expressão desdenhosa “vai caçar gambuzinos” na boca.
E pronto, cá estou, com 26 anos a passear a filha de dois anos pelo Aquário Vasco da Gama. A filha Beatriz a admirar os cavalos marinhos e a passar os dedos pela carapaça das tartarugas e, continuando o passeio, o desabar de 26 anos de uma forma de olhar o mundo. Num pequeno aquário, em frente ao tanque das tartarugas, estão uns peixes mínimos, translúcidos, com reflexos brilhantes. O letreiro informativo tem escrito: Gambuzinos. Já não recordo o nome científico, mas é uma latinada qualquer do género gambuzino gambuzinae. O que é certo é que são gambuzinos! Peixes do Índico chamados gambuzinos! Não posso crer. Exclamo: “gambuzinos”, com ponto de exclamação apropriado, o que significa que falei alto o suficiente para que a mão da minha filha tremesse na minha. Ela não sabe o que me está a acontecer e olha-me, espantada. Ela não sabe que ver estes peixinhos que brilham no escuro (certamente vem daí a ideia de que são semelhantes a pirilampos) é, para mim, um regresso abrupto e inesperado à ignorância infantil e ao frio áspero da Guarda nas orelhas durante a caça aos gambuzinos. Ela não sabe que, para mim, isto é o mesmo que ir ao Jardim Zoológico, encontrar uma jaula onde habita um mamífero gordo, vermelho e de longas barbas brancas e depois, lendo o letreiro, perceber que se trata do Pai Natal. A minha filha não sabe que eu acabei de ver gambuzinos, gambuzinos verdadeiros e que isto é o mesmo que a descoberta científica e concreta de que o Pai Natal existe. Distraída com os cavalos marinhos, a minha filha larga-me a mão e nem se dá conta que eu, 26 anos depois, descobrindo que os gambuzinos existem (e que apesar de não poderem ser caçados, podem ser pescados), eu fiquei comovido a olhar para aquele aquário. Não digo que tenha chorado. Chorar também seria demais. Isso não. Nem pensar.

Mas imaginei-me a pescar grandes gambuzinos, no meio das mimosas, perante o olhar incrédulo do meu tio.

3 Comments:

  • At 12:03 da manhã, Anonymous Anónimo said…

    e uma merda

     
  • At 10:36 da tarde, Blogger Mouse said…

    Adorei o texto! Espero que tenha adorado o aquário :)
    Cumprimentos!

     
  • At 8:15 da tarde, Anonymous Anónimo said…

    Este texto está muito muito bom. Li, revi-me, ri-me e quase chorei. Não digo que tenha chorado, chorar também seria demais.

     

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