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9.8.04

Camisa branca

Na varanda, a olhar o eucaliptal em frente ao apartamento onde nos colocaram, visto a camisa branca, de manga curta, que pertenceu ao meu avô paterno. A Beatriz dorme a sesta no quarto. Vejo-a sempre que a cortina esvoaça e revela o interior da divisão. Sempre na mesma posição, olhos fechados, respirando fundo.
Enquanto visto a camisa branca, impecavelmente conservada, penso que o meu avô lhe terá dado pouco uso. Talvez seja ainda do tempo em que ele tinha a taberna em Moncorvo. Devia usá-la apenas nos dias feriados, para evitar manchá-la com nódoas de vinho ou do azeite abundante no bacalhau frito que a minha avó servia aos clientes. Penso que não estou assim tão longe de Moncorvo e que devia dar lá um salto para ver a minha avó. E para a Beatriz rever a bisavó que conheceu há já tanto tempo.
O chão de mosaico do apartamento que o festival alugou para nós parece um tabuleiro de xadrez. A minha camisa branca condiz com o chão feio deste apartamento onde ficou instalada toda a companhia. Dou por mim a pensar no branco e no negro. No Bem e no Mal. No Yin e Yang, seja lá isso o que realmente for. Na Luz e nas Trevas. No Masculino e Feminino. Na Vida e na Morte. Dou por mim a perguntar-me se estas coisas alguma vez passaram pela cabeça do meu avô enquanto vestia esta camisa branca de manga curta.
Tenho vontade de pegar no carro e ir até Moncorvo, mostrar a Beatriz à minha avô e passear esta camisa branca pelas ruas por onde o meu avô a passeou. A mesma camisa a cobrir corpos diferentes, mas do mesmo sangue. Talvez alguma velha me cumprimentasse, pensando que eu era o meu avô. Pensando que o meu avô se tinha tornado jovem. Era esta a vontade que eu tinha. Mas hoje não é o meu dia de folga.


Montemor-o-Velho, 6 de Agosto de 2004